Estado estaria violando legislação internacional que obriga realização de consulta prévia a povos e comunidades tradicionais
Comunidades tradicionais e quilombolas marcaram presença na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), nesta sexta-feira (13/06), para exigir o direito à Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) durante a implantação do Rodoanel Metropolitano de Belo Horizonte. As reivindicações foram apresentadas durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos.
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A CLPI está prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. A norma determina que povos e comunidades tradicionais devem ser consultados sobre qualquer medida administrativa que venha afetar seu território.
No entanto, de acordo com a presidenta da Comissão de Direitos Humanos, deputada Bella Gonçalves (Psol), a licença prévia para realização da obra do Rodoanel já foi emitida pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) sem que a CLPI fosse garantida a povos e comunidades tradicionais da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
“O que foi feito pela Semad é irregular”, denunciou a parlamentar. Ela criticou a ausência da secretária de Meio Ambiente Marília Carvalho de Melo na audiência, anunciando que fará a convocação da gestora numa próxima oportunidade. “Precisamos escutar as respostas que o Estado nos deve”, afirmou Bella.
Makota Cássia Kidoialê, matriarca do Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, classificou a situação como uma violação aos direitos das comunidades de existir e proteger seu território. Ela comparou o conflito com a guerra no Oriente Médio, lembrando que os dois casos tratam de disputas por “terra e fé”.
“O Estado está nos ignorando e se comportando acima da lei, violando um direito que nos é garantido.”
Makota Cássia Kidoialê, matriarca do Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango
Para Ione Maria de Oliveira (Mãe Ione Ty Oyá), mestra do Kilombo Mangueiras e da Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais (Ngolo), sempre que há um empreendimento novo sendo construído, os quilombos ficam aguardando uma contrapartida que nunca chega. “Os quilombos de Minas Gerais estão impactados, sofrendo violências com a conivência do Estado”, denunciou.
Patrimônio imaterial ameaçado
A preocupação de João Carlos Pio de Souza, do Quilombo dos Arturos e membro da Comissão das Comunidades Tradicionais Atingidas pelo Rodoanel, é que o empreendimento vá impactar o modo de vida das comunidades, baseado na ligação ancestral com o meio ambiente.
“Sem folha, não há orixá. Sem água, não há orixá. A nossa relação com a natureza é extremamente importante”, afirmou João Carlos, destacando que vários terreiros deixarão de existir com a obra do Rodoanel. Ele relatou que, além dos povos de terreiros, comunidades de congado e reinado também serão impactadas.
“As comunidades tradicionais não são atrasadas como dizem. O que não queremos é empreendimento que passa por cima da vida das pessoas.”
João Carlos Pio de Souza, do Quilombo dos Arturos e membro da Comissão das Comunidades Tradicionais Atingidas pelo Rodoanel
Maria Geralda Gonzaga Carvalho, presidente da Associação Quilombola Quilombo de Pinhões, de Santa Luzia (RMBH), contou que o território de sua comunidade abriga um cemitério de pessoas escravizadas. Ela teme que o cemitério, com toda sua relevância histórica e ancestral, seja extinto pelo traçado do Rodoanel.
O vereador de Santa Luzia, Glaucon Durães da Silva Santos, informou que foi demandado o tombamento do cemitério junto ao Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) e que o registro do local como sítio arqueológico já foi conquistado no ano passado.
Licença prévia teria atropelado consulta a comunidades
A licença prévia para a obra do Rodoanel foi emitida pela Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam), pertencente à Semad, no dia 27 de janeiro deste ano. No entanto, somente no dia 17 de maio a medida se tornou de conhecimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável por garantir a consulta às comunidades.
A essa altura, o processo de consulta estava em sua fase inicial, como explica Eleandra Raquel Silva Koch, coordenadora-geral de Licenciamento Ambiental em Territórios Quilombolas do Incra. Ela conta que a empresa Tractebel, consultoria contratada para realizar a consulta, chegou a apresentar uma primeira versão do seu plano de trabalho, que foi rejeitado pelas comunidades.
“As comunidades consideraram que não se sentiam suficientemente esclarecidas para apreciar o plano de trabalho”, disse a representante do Incra. Segundo Eleandra, os principais questionamentos dirigidos à Tractebel se referiram a questões tarifárias, ao traçado do Rodoanel e à necessidade de uma assessoria técnica independente para acompanhar as comunidades no processo de consulta.
O procurador da República do Ministério Público Federal (MPF), Edmundo Antônio Dias Netto, reforçou a crítica em relação à postura da Semad. “É aterrorizante que o Estado não tenha, a tempo e modo adequados, informado o Incra de que a licença já estava expedida. Isso viola o princípio da cooperação entre os entes federativos”, avaliou. “É importante que o Governo dê dois passos atrás e revogue a licença prévia”, concluiu.

Para a defensora pública Ana Cláudia da Silva Alexandre Storch, há uma recusa do Estado em cumprir o que a lei determina sempre que há um licenciamento envolvendo povos e comunidades tradicionais. “O Estado tenta tirar sua responsabilidade. O que efetivamente precisamos exigir é o cumprimento da lei que já existe e mais nada”, defendeu.
Executivo reforça importância do empreendimento
O subsecretário de Transportes e Mobilidade da Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade de Minas Gerais (Seinfra), Aaron Duarte Dalla, reforçou, por meio de uma apresentação, a importância da construção do Rodoanel.
Os principais benefícios, segundo ele, são aliviar o tráfego e diminuir o tempo de deslocamento e os acidentes no atual Anel Rodoviário. Ele também destacou a geração de empregos e a indução de desenvolvimento ao longo do trajeto.
“O Rodoanel não é invenção deste governo, é um processo natural de desenvolvimento de grandes metrópoles”, pontuou, citando como exemplo iniciativas semelhantes em São Paulo (SP) e Florianópolis (SC).
Ainda de acordo com ele, ao contrário das críticas feitas ao longo de toda a audiência, o Estado sempre teria buscado o diálogo e o entendimento por meio de várias iniciativas, mas não teria contado com a receptividade nas comunidades atingidas. E, na fase atual desse processo, a CLPI, ainda haveria margem para entendimentos e adequações do traçado que se provarem necessárias.
Ainda sobre o licenciamento prévio, a parlamentar apontou que o procedimento não dá direito para que se inicie a coleta de dados para realocação dos moradores impactados, conforme diversos relatos feitos ao longo da reunião. Moradores falaram sobre o sobrevoo de drones, a invasão de imóveis e até a realização de uma pesquisa preliminar para reassentamento disfarçada de um levantamento social para outros fins.
“Isso ainda não permite a entrada e a selagem de casas, como eles já tentam fazer. O licenciamento prévio precisa ser seguido ainda do estudo de impacto ambiental, de medidas compensatórias e a aprovação da licença de instalação. Recomendo fortemente que quem for procurado faça um boletim de ocorrência”, acrescentou.
Na mesma linha, Beatriz Cerqueira (PT) também criticou a truculência na condução do processo. “Esse é um governo que tem medo do povo. O que podemos fazer é obstruir para forçar um debate mínimo dessa pauta grave que cumpre apenas os interesses de grupos econômicos e nada a ver com os interesses da população, como a mobilidade”, emendou.
No encerramento da audiência foram aprovados diversos requerimentos de audiências, visitas e pedidos de providência e informação sobre o tema, inclusive com a convocação dos titulares das secretarias de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e de Desenvolvimento Social.
Fonte: Assessoria ALMG
Foto: Willian Dias/ALMG